domingo, 21 de abril de 2013

INTERTEXTUALIDADE


Em se tratando de criação artística, na tentativa de aproximar uma obra de outra, utilizar uma obra como base para a produção de outra, os artistas podem "tomar por empréstimo" um elemento específico, uma estrutura, ou toda a obra, reelaborando-a com uma proposta diferente.

Para tanto, se valem do processo de intertextualidade que é definido por Fiorin (2003) como a "incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo".

Segundo Kristeva (1974), “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”.

A intertextualidade pode ser definida ainda como o "diálogo" de um texto com outro(s) texto(s).

Tomemos como exemplo os textos abaixo:


Texto 1
 Mateus 26.39-42
Bíblia Sagrada

“E, indo um pouco mais para diante, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres.
E, voltando para os seus discípulos, achou-os adormecidos; e disse a Pedro: Então nem uma hora pudeste velar comigo?
Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca.
E, indo segunda vez, orou, dizendo: Pai meu, se este cálice não pode passar de mim sem eu o beber, faça-se a tua vontade.”

Texto 2
 Cálice
Chico Buarque

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor e engolir a labuta?
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada, prá a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda (Cálice!)
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!)
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade?
Mesmo calado o peito resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno (Cale-se!)
Nem seja a vida um fato consumado (Cale-se!)
Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!)
Quero morrer do meu próprio veneno (Pai! Cale-se!)
Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!)
Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!)
Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cale-se!)
Me embriagar até que alguém me esqueça (Cale-se!)

Texto 3
 Cálice
Criolo

Como ir pro trabalho sem levar um tiro
Voltar pra casa sem levar um tiro
Se as três da matina tem alguém que frita
E é capaz de tudo pra manter sua brisa

Os saraus tiveram que invadir os botecos
Pois biblioteca não era lugar de poesia
Biblioteca tinha que ter silêncio,
E uma gente que se acha assim muito sabida

Há preconceito com o nordestino
Há preconceito com o homem negro
Há preconceito com o analfabeto
Mais não há preconceito se um dos três for rico, Pai.

A ditadura segue meu amigo Milton
A repressão segue meu amigo Chico
Me chamam Criolo e o meu berço é o rap
Mas não existe fronteira pra minha poesia, Pai.

Afasta de mim a biqueira, Pai.
Afasta de mim as biate, Pai.
Afasta de mim a coqueine, Pai.
Pois na quebrada escorre sangue, Pai.

Pai
Afasta de mim a biqueira, Pai.
Afasta de mim as biate, Pai.
Afasta de mim a coqueine, Pai.
Pois na quebrada escorre sangue.




Percebemos que o texto 2 toma o trecho "Meu Pai, se é possível, passa de mim este cálice" que, no trecho do Evangelho (texto 1), se refere claramente ao fato de Jesus, o Filho que se dirige ao Pai, pedir para que aquele sofrimento que estaria por vir (a crucificação) pudesse ser afastado dele, e o transforma aludindo claramente à violência repressora da ditadura. Tanto é, que mais adiante o "Cálice", pela proximidade fonética, acaba tomando a forma de "cale-se".


Por sua vez, o texto 3 é construído tomando por base a estrutura e a melodia do texto 2, mas conforme vemos transforma-o para adequar-se a uma nova proposta estética e semântica.

Caso queiram, podem aprender um pouco mais sobre a canção Cálice, de Chico Buarque e Milton Nascimento, nestes endereços:




Em nossas aulas no primeiro ano médio, propusemos as atividades abaixo como forma de explorar a riqueza linguística dos textos e reforçar cada um dos conhecimentos adquiridos no 1º bimestre este ano letivo (2013).

ATIVIDADE 1

1.      O texto 1 é do tipo ____________; seu gênero textual é ______________.
a)    Narrativo – conto;
b)    Descritivo – romance;
c)    Narrativo – Evangelho;
d)    Argumentativo – notícia;
e)    Informativo – Biografia.

2.      De imediato, é possível identificar um elemento comum entre os textos. Que elemento é esse?

3.      Como é chamado esse processo em que um texto cita ou faz referência a outro?

4.      Quanto à organização, em que se diferem ou se aproximam os textos?

5.      Notadamente, cada um dos textos apresenta um contexto diferente. Pesquise e/ou pergunte a seus professores(as) – preferencialmente os professores de História ou Geografia –, depois responda: a que contexto se refere cada um dos textos?

6.      Nas duas canções (textos 2 e 3), vemos que a voz lírica indica uma postura crítica. Lavando-se em conta a linguagem empregada nos textos, o que podemos afirmar sobre as condições de produção dos textos e as condições sociais dos seus autores?

7.      Em cada texto, o que representa o “Cálice”?

8.      Na última estrofe do texto 2, o autor utiliza uma expressão que, na oralidade, apresenta os mesmos fonemas do título do texto. Na escrita, que impressão essa troca causa no leitor?


ATIVIDADE 2

TEXTO BASE PARA A ATIVIDADE: “CÁLICE” – CHICO BUARQUE

01 – Levando em consideração o sentido metafórico do texto, no que tange ao título da canção, podemos inferir que:
a) O título remete ao sangue de cristo, uma vez que nas liturgias cristãs o cálice ofertado simboliza o sangue de Jesus.
b) Remete a agonia de Jesus no calvário.
c) É uma expressão totalmente ambígua, pois não tem nada a ver com o sentimento do calvário.
d) A ambiguidade da palavra “cálice”, em relação ao imperativo do verbo calar, remete à atuação da censura durante o regime.
e) Todas as alternativas estão corretas.

02 – Em relação ao sentido metafórico do verso: “Pai, afasta de mim esse cálice”.
a) Sintetiza uma súplica por algo que se deseja ver à distância;
b) Remete a impossibilidade de aceitar aquele quadro social;
c) O verso denuncia os métodos de torturas e repressão;
d) Significa a imposição de ter que aguentar a dor e aceitá-la como algo banal e corriqueiro;
e) O “eu lírico” está admitindo a dificuldade de aceitar passivamente as imposições.

03 – “De vinho tinto de sangue” na Bíblia, esse conteúdo é o sangue de Cristo, na música é:
a) O vinho ofertado nas liturgias cristãs.
b) O sangue de Jesus.
c) O sangue derramado pelas vítimas da repressão e torturas.
d) O sangue dos políticos envolvidos nas mortes.
e) A sena de violência entre os mortos e feridos.

04 – Relacione os versos com seus respectivos sentidos atribuídos na música de Chico Buarque.
(A) Como beber dessa bebida amarga.
(B) Tragar a dor.
(C) Engolir a labuta.
(D) Mesmo calada a boca resta o peito.
(E) Esse silêncio todo me atordoa.
(F) Atordoado, eu permaneço atento.
(G) Outra realidade menos morta.

(    ) Aguentar a dor e aceitá-la como algo banal e corriqueiro.
(  ) Mesmo sobre tortura o “Eu lírico” permanece em estado de alerta como se estivesse esperando um espetáculo que estaria por vir.
(    ) Mesmo tendo a liberdade cerceada, resta o desejo escondido e inviolável dentro do peito.
(  ) Remete à dificuldade de aceitar um quadro social em que as pessoas eram subjugadas de forma desumana.
(   ) O “Eu lírico” remete anseia por uma realidade na qual os homens não tivessem sua individualidade e seus direitos anulados.
(    ) Tal verso denuncia os métodos de torturas e repressão, utilizados para conseguir o silencio das vítimas, fazendo-as perderem os sentidos.
(    ) Aceitar uma condição de trabalho subumana de forma natural e passiva.

 05 – “Silêncio na cidade não se escuta”. A palavra silêncio está implicitamente relacionada à:
a) censura                              
b) a falta de pessoas pelas cidades devido ao Estado de sítio decretado pelo governo;
c) as mortes ocorridas durante esse período;
d) a ignorância dos ditadores em relação ao cidadão comum;
e) todas as respostas estão corretas.

06 – Não fugindo à temática da religião, Chico e Gil usam de metáforas para mostrar suas descrenças naquele regime político e rebaixa a figura da “pátria mãe” à condição de prostituta. O verso que remete a essa afirmativa seria:
a) De que me vale ser filho da santa;
b) De muito gorda a porca já não anda;
c) Quero inventar meu próprio pecado;
d) Atordoado, eu permaneço atento;
e) Melhor seria ser filho da outra.

07 – “Silêncio na cidade não se escuta”. A figura destacada na frase é.
a) hipérbole
b) antítese
c) paradoxo
d) perífrase
e) hipérbato

08 – O regime militar propagandeava que o país vivia um “milagre econômico” e todos eram obrigados a aceitar essa realidade como uma verdade absoluta. A frase que melhor expressa esta ideia é:
a) Atordoado eu permaneço atento;
b) Quero lançar um grito desumano;
c) Essa palavra presa na garganta;
d) Esse pileque homérico do mundo;
e) Tanta mentira tanta força bruta.

09 – “Como é difícil acordar calado, se na calada da noite eu me engano”. Através desta mensagem o “Eu lírico” admite:
a) dificuldade de aceitar passivamente as imposições do regime;
b) as torturas e prisões geralmente ocorriam na calada da noite;
c) que tudo era reprimido;
d) por viver em um regime repressor as decisões eram tomadas de forma clandestina;
e) todas as alternativas estão corretas.

10 – Talvez porque ninguém escutasse as mensagens lançadas por vias pacíficas e ordeiras, uma das possibilidades, por conta de tanto desespero, seria partir para o confronto. Essa ideia está implícita nos seguintes versos:
a) Esse silêncio todo me atordoa;
b) Essa palavra presa na garganta;
c) Silêncio na cidade não se escuta;
d) Quero lançar um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado;
e) Outra realidade menos morta.

11 – O porco é o símbolo da gula, e está entre os sete pecados capitais, retomando a temática da religiosidade o “Eu lírico” afirma: “De muito gorda a porca já não anda”. Além da simbologia religiosa a frase acima também faz referência a:
a) a inoperância dos governantes frente ao regime;
b) ao sistema ditador, que, de tão corrupto e ineficiente, já não funcionava;
c)  as atitudes cruéis dos ditadores que não tinham piedade de seus desafetos;
d) as intensas prisões ocorridas;
e) todas as alternativas estão corretas.

12 – “De muito usada a faca já não corta”. A afirmativa acima traz implícita a seguinte conclusão a respeito daquele momento político:
a) inoperância e desgaste de uma ferramenta política utilizada à exaustão;
b) apelo que sejam diminuídas as dificuldades;
c) que o instrumento mais usado para assassinar os “delinquentes” era uma faca;
d) o instrumento usado para punir os prisioneiros políticos não funcionava como antes.
e) Nenhuma alternativa está correta.

13 – “Como é difícil, pai, abrir a porta”. A porta simboliza.
a) entrada para o regime de escuridão;
b) saída de um regime violento;
c) um novo tempo;
d) todas as alternativas estão corretas;
e) as alternativas b e c estão corretas.

14 – “Quero inventar o meu próprio pecado”. Subtende-se que com esses versos o “eu lírico”.
a) expressa a vontade de libertar-se das imposições;
b) almeja definir por si só seus erros, sem que os outros apontem;
c) defende a criação de suas próprias regras;
 d) deseja urgente uma real liberdade;
 e) todas as alternativas estão corretas.

15 – “Quero perder de vez tua cabeça/minha cabeça perder teu juízo”. Nos versos acima, encontra-se implícita a(s) seguinte(s) mensagem(s).
a) desejo pelo próprio juízo e não o do opressor;
b) quer decapitar a cabeça da ditadura;
c) deseja libertar-se do juízo imposto pelo regime militar;
d) almeja ser dono de suas próprias ideias.
e) todas as alternativas estão corretas.


Referências
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KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974
FIORIN, José Luiz. Polifonia textual e discursiva. In: BARROS, Diana Pessoa de; FIORIN,
José Luiz (orgs.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de Bahktin Mikhail. São
Paulo: EDUSP, 1994.

A atividade 2 está disponível em:

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